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A polêmica do parágrafo único do art. 316 do CPP: caso André do Rap

O que decidi tratar no texto de hoje é tentar explicar – para quem não é do Direito, para quem é, mas não entende nada de processo penal, para quem é criminalista e também para mim mesma (nada como escrever para organizar as ideias) as polêmicas decisões do STF a respeito da interpretação do novo artigo incluído pela Lei Anticrime no Código de Processo Penal – mais especificamente o parágrafo único do art. 316 do CPP.

A novidade legislativa caiu na boca do povo quando um caso “grande” chegou ao STF. Semana passada o Min. Marco Aurélio, em sede de liminar no HC 191836, determinou a soltura de André Oliveira Macedo, conhecido como André do Rap, apontado como um dos líderes da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC).

Num plot twist digno de filme, o novo presidente da Corte, Min. Luiz Fux, suspendeu a liminar do Min. Marco Aurélio (SL 1395) e submeteu o caso ao plenário, no qual, por maioria de votos, os ministros fixaram o entendimento de que “a inobservância da reavaliação no prazo de 90 dias, previsto no artigo 316 do Código de Processo Penal (CPP), com a redação dada pela Lei 13.964/2019 (conhecida como pacote anticrime), não implica a revogação automática da prisão preventiva: o juízo competente deve ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos”. 

Sem entrar nos pormenores de se um Ministro pode ou não suspender a decisão de outro (mas recomendo fortemente a leitura de artigo sobre a temática), eu quero falar brevemente sobre o que verdadeiramente importa neste caso no ponto de vista criminal – o total esvaziamento dado pelo STF a um artigo tão importante para a realidade da persecução penal brasileira. 

Mas como assim? Eu estou defendendo um artigo que autoriza que se soltem “bandidos”? E “bandidos perigosos”, ainda por cima? Em resumo, sim. Porém, a questão é sempre mais profunda do que se parece.

É inegável que temos uma das maiores populações carcerárias do mundo no Brasil, e essa população é composta por cerca de 40% de presos provisórios. Isso significa que quase a metade das pessoas que se encontram presas hoje no nosso país ali estão em razão de uma decisão judicial não definitiva – proferida antes de existir um processo, no curso de um processo ou ainda passível de recurso. O que é surreal, porque significa que as pessoas já estão, na prática, sendo penalizadas sem mesmo haver certeza jurídica de que existem provas concretas de que elas cometeram o crime do qual estão sendo acusadas. 

E sim, é fundamental, num Estado Democrático de Direito, que a gente tente chegar o mais perto possível da certeza antes de submeter alguém a uma condenação criminal, que deixa marcas irreparáveis na vida de uma pessoa. Porque não existe lei perfeita, a prática difere muito da teoria, e o sistema jurídico é composto por seres humanos, que, como todos nós, erram. Erram ao condenar e determinar que alguém seja preso, inclusive.

Por isso a importância de, diante deste cenário caótico do Brasil, em que se prende muito e prende mal, a Lei Anticrime ter trazido um instrumento legal que impunha o dever dos magistrados de, após a decretação da prisão preventiva, revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 dias. Parece surreal que em pleno 2020 a gente precise de uma lei que lembre os juízes de que existem pessoas presas de forma preventiva, portanto provisória, e que é preciso revisar a necessidade de manter essas pessoas presas periodicamente.

Infelizmente, não são raros os casos de pessoas literalmente esquecidas na prisão, em especial as que não têm condições financeiras de pagar um(a) advogado(a) para lutar pelos seus direitos, cujos processos ficam parados anos a fio.

Mas, antes de qualquer divagar interpretativo a respeito do artigo da Lei Anticrime, como sempre recomendo, é bom ler exatamente o que consta na lei:

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)  

Como se vê, o artigo trata tão somente da necessidade – real, concreta e urgente – de se revisar a necessidade de manutenção da prisão preventiva depois que ela tenha sido decretada. Para tentar deixar o mais evidente possível, o parágrafo único trouxe uma obrigação aos juízes de analisarem, em cada caso concreto, se é preciso ou não manter uma pessoa presa enquanto ela aguarda uma decisão final em seu processo. 

Para uma prisão preventiva ser decretada, é necessário o preenchimento de uma série de requisitos, que não vou abordar aqui para não se desvirtuar do meu propósito de textos curtos e objetivos para este site. O que quero destacar é que muitas coisas podem acontecer e mudar durante um determinado período de tempo, inclusive alguns dos requisitos da prisão preventiva podem deixar de existir. Por isso a obrigação de se rever a medida extrema da prisão, no mínimo, a cada 90 dias. 

Como se pode perceber no artigo transcrito acima, o Pacote Anticrime sequer mencionou a gravidade da conduta supostamente cometida ou a capacidade financeira de quem está preso como condicionantes a aplicação da regra do parágrafo único do art. 316. Isso porque a lei é a mesma para todos.

Lamentavelmente, já sabemos que não é assim que funciona. 

Enquanto um “André do Rap” consegue: 1) que seu Habeas Corpus seja analisado e deferido liminarmente em prazo recorde, 2) a expedição do seu alvará de soltura e o cumprimento da decisão, tendo tido tempo de ser solto e de se encontrar atualmente foragido; 3) chamar a atenção de todo o país e de todos os ministros do STF, milhares, literalmente milhares de “ninguéns” não tem a mesma “sorte”.

Permanecem atrás das grades, por vezes esquecidos(as). Às vezes vem um sopro de esperança legal como o parágrafo único do art. 316 do CPP que, como tudo aquilo que é bom demais para ser verdade, cerca de 10 meses depois de começar a valer, praticamente não terá mais aplicabilidade prática após a lamentável decisão da nossa Suprema Corte.

Termino dizendo que há uma razão de ser para a separação dos nossos poderes estatais. O Poder Legislativo é separado do Poder Judiciário, porque Judiciário não legisla. Judiciário aplica a lei que já existe. Sem qualquer ingenuidade e tentando adequar a sua aplicação e interpretação a cada caso concreto e à realidade do nosso país. 

Eu entendo e concordo que cada caso é um caso e que, especialmente na área criminal, em que há muita coisa em jogo, é difícil e até não recomendável em algumas situações a aplicação automática da lei. Por isso temos tantas instâncias e possibilidades legais de questionamento de decisões judiciais. Mas o Judiciário não serve para pessoalizar questões atinentes à esfera penal. 

A Justiça tem que julgar o fato, e não apenas a pessoa acusada por estar detrás do fato criminoso. Não temos milhares de André do Rap presos no Brasil. Temos milhares de desconhecidos aos olhos da sociedade, mas entes queridos em seus seios familiares. E sinto que estamos falhando com todos eles. Como justiça, e como sociedade. 

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