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Não existe estupro culposo: uma análise jurídica

Opinião jurídica

Há muito tempo recebo pedidos para me manifestar publicamente sobre o caso de acusação de estupro da influenciadora digital Mariana Ferrer, que teria acontecido num beach club aqui em Florianópolis. Sempre me abstive de escrever sobre por uma série de motivos, dentre eles o fato de ser um caso que tenha ocorrido na minha cidade e onde exerço a minha profissão; ser uma questão criminal, que é justamente a minha área de atuação; ser um processo que tramita em segredo de justiça; e em especial por haverem advogados constituídos nos autos. Não cabe a mim, por questões éticas e morais, opinar publicamente em processos que já possuam advogados atuantes, muito menos a respeito da atuação dos colegas. 

Contudo, em razão principalmente da matéria divulgada pelo The Intercept Brasil na data de ontem (03/11/2020) e por eu ter recebido um número muito alto de questionamentos sobre o assunto no Instagram e WhatsApp, decidi hoje abordar o assunto na minha coluna. Numa perspectiva educacional e instrutiva, é claro, e da forma mais simples que eu conseguir transmitir a mensagem. 

Vou falar sobre o conteúdo da matéria divulgada, e o que consta na denúncia e na sentença do caso. As duas únicas peças do processo que eu tive acesso e pude ler na íntegra para entender melhor do que se trata. 

Começamos por alguns esclarecimentos necessários. Existem várias figuras que atuam no processo penal. À polícia cumpre investigar, ao Ministério Público cumpre acusar e produzir provas que corroborem as suas acusações, à defesa cumpre garantir que a lei esteja sendo cumprida e produzir provas que possam auxiliar no deslinde do feito, e ao Poder Judiciário, na figura de um(a) juiz(a) de direito cumpre julgar o que consta no processo, respeitando a lei. 

Não são todos os casos, infelizmente, que a vítima ocupa uma posição de destaque numa ação penal. Por vezes ela é sequer ouvida na fase judicial, por mais inacreditável que isso possa parecer. Porém, é claro que em crimes sexuais a participação da vítima possui uma grande importância. Por isso, às vítimas de crimes cuja persecução penal se dá por meio de uma ação penal pública incondicionada (o que significa que o Ministério Público é o titular da ação penal e que preenchidos os requisitos legais, a denúncia será oferecida, independente da vontade da vítima) é facultada a opção de pedir para se habilitar e atuar nos autos do processo, como assistente da acusação.

É este o cenário que temos neste processo. A polícia, que investigou o caso na etapa extrajudicial, reuniu provas, inquiriu testemunhas, o investigado, juntou perícias, documentos e imagens; o Ministério Público, que opiniou por denunciar o acusado pelo crime de estupro de vulnerável, por entender que dos elementos colhidos na investigação existiam provas suficientes da materialidade do delito e indícios da autoria para dar iníico a uma ação penal, o juiz de direito, que recebeu a denúncia e deu início a persecução penal, a defesa do acusado e a vítima, com procurador constituído e habilitado como assistente de acusação. 

Fiz questão de explicar todos esses diferentes papéis porque é comum que haja uma confusão na mídia e no senso comum da população sobre quem é responsável pelo quê numa ação penal. Já ouvi e li que o “Ministério Público condenou”, por exemplo, o que é impossível juridicamente. Ministério Público é parte do processo, é acusação, produz provas e faz pedidos. Quem julga é o(a) juiz(a).

Dito isso, a acusação do caso concreto é do cometimento do crime de estupro de vulnerável, que está previsto no art. 217-A do Código Penal: 

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:          

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.          

§ 1o  Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.         

[…]

§ 5º  As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime. 

A diferença do crime de estupro (art. 213 do CP) e estupro de vulnerável é que o estupro “simples” pressupõe o uso de violência ou grave ameaça contra a vítima para constrangê-la a ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso. Já no estupro de vulnerável se exige uma condição específica da vítima: ela precisa ser menor de 14 anos, ou possuir alguma enfermidade ou deficiência mental ou se – por qualquer motivo – ela não possua discernimento para a prática do ato. Em razão da vulnerabilidade da vítima, portanto, ela não poderia oferecer resistência. A acusação do caso concreto é que a vítima não possuía condições de resistir ao ato por estar sob efeito de alguma substância, involuntariamente ingerida, o que seria comprovado ao longo da instrução. 

Para que alguém seja condenado pelo crime de estupro de vulnerável, portanto, é preciso que haja: provas da conjunção carnal ou do ato libidinoso praticado; provas de autoria – que a pessoa acusada é quem cometeu o crime, com vontade e consciência (dolo); e provas da vulnerabilidade da vítima (da idade, a certidão de nascimento ou documento de identidade basta; da enfermidade ou deficiência, laudos e documentos médicos; se for outra causa, provas contundentes e concretas da vulnerabilidade (se a vítima foi drogada, o mais comum são laudos toxicológicos positivos, por exemplo, mas ainda assim há margem de questionamento e uso de provas diversas).

O crime de estupro de vulnerável é um crime doloso. Isso significa que a pessoa que o comete precisa ter o dolo – a vontade e a consciência – de praticar o crime. Em termos legais, o agente quis o resultado do crime ou assumiu o risco de produzi-lo (art. 18, I, CP) A maioria dos crimes previstos no nosso ordenamento são dolosos, mas existem também os chamados crimes culposos, cuja possibilidade precisa estar expressamente prevista em lei. Crime culposo é aquele no qual o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia (art. 18, II, CP), ou seja, agiu de forma precipitada, sem precaução, de forma desatenta ou sem habilidade técnica para tanto.

Não existe, portanto, estupro e nem estupro de vulnerável culposo. Não é possível agir com imprudência, negligência ou imperícia na prática de um crime de estupro.

Logo, no caso concreto que estamos analisando, além de provar que a conjunção carnal ou ato libidinoso ocorreu, provar quem teria praticado o ato e provar a vulnerabilidade da vítima, é preciso provar também o dolo para que o acusado seja condenado. Ao Ministério Público, enquanto acusação, cumpre comprovar que o acusado sabia que a vítima era vulnerável e não poderia oferecer resistência (vítima aparentando estar bêbada ou drogada, por exemplo).

Há posicionamentos doutrinários, citados na sentença do caso concreto inclusive, que tratam sobre a possibilidade de se sustentar a atipicidade do fato (o que significa que o fato investigado não constitui crime), por ausência de dolo, quando o agente não sabe dessa condição de vulnerabilidade da vítima. Que é o que chamamos, no Direito Penal, de erro de tipo, previsto no art. 20 do Código Penal:

Art. 20 – O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. 

Explicando o juridiquês, se o acusado não sabia ou não tinha como saber da vulnerabilidade da vítima, ele não teve a vontade e consciência de praticar o estupro de vulnerável. Não tinha dolo. E como não existe “estupro culposo”, ele não pode ser punido pela prática de nenhum crime.

Erro de tipo é uma excelente tese defensiva, plenamente possível de acontecer em muitos casos. Não é uma aberração jurídica, é algo que existe no nosso Código Penal desde 1984. E erro de tipo não é sinônimo de “estupro culposo”.

Não há, em nenhum momento da sentença, o uso da expressão “estupro culposo” e muito menos qualquer analogia quanto a possibilidade da sua utilização, ao contrário do que consta na matéria do The Intercept Brasil. Não posso dizer o mesmo de alguma eventual manifestação do Ministério Público porque não tive acesso a íntegra dos autos. 

Já me estendi bastante para a finalidade desta coluna, mas ainda gostaria de pontuar algumas coisas essenciais em meio a um caso de tanta repercussão. 

Todos, absolutamente todos, merecem ser tratados com respeito, dignidade, decoro e profissionalismo, dentro ou fora do processo, em qualquer etapa judicial. E eu diria que em especial num caso de acusação de crime de estupro de vulnerável. Comprovada ou não a acusação, é uma questão absolutamente delicada para todos os envolvidos, em especial vítima e acusado, que merecem, no processo, de forma igualitária, um tratamento permeado de sensibilidade, empatia e respeito. Já falei muito nesta coluna sobre isso, mencionando até os contornos do uso da comunicação não-violenta para resolver conflitos penais

Além disso, é inegável a dificuldade na produção de provas de crimes sexuais. Infelizmente, é enorme o preconceito e o questionamento sofrido por mulheres vítimas de crimes sexuais. Fora a frequente revitimização. Também é certo que, nesses casos, a palavra da vítima deve ter um grande peso, mas ela nunca será a única fonte de prova. Ao mesmo tempo que o Estado tem o dever de analisar com cautela as provas produzidas, também cumpre ao Estado garantir que todos sejam tratados com humanidade. Porque mesmo numa estrutura formal e até mesmo hierárquica do Judiciário, ninguém é melhor ou pior do que ninguém.

Em resumo, qualquer pessoa só pode ser condenada com base na existência de provas concretas da prática do crime, cumprindo todos os requisitos legais. O conjunto probatório precisa ser analisado como um todo. Ninguém pode ser condenado em razão de um clamor social ou de elementos divulgados na mídia. Provas para condenar se produzem numa ação penal, num procedimento sério, perante um juiz de direito. Um juiz analisa o que está nos autos, e não o que está fora deles. Um juiz não profere uma sentença com base na sua opinião pessoal ou porque a sociedade espera um determinado resultado. Gostando ou não, essa é a regra do nosso jogo jurídico.

Sobre a sentença, minha opinião jurídica é que ela está bem fundamentada, é técnica, direta, objetiva, citando doutrinas e julgados que se relacionam ao caso concreto. Inclusive, começa o magistrado, na fundamentação da sentença, destacando a premissa essencial de que, num sistema acusatório, um juiz jamais poderia condenar um acusado quando o Ministério Público requer a absolvição. Premissa essa continuamente desrespeitada no dia a dia profissional, mas algo que é defendido pelos grandes processualistas desde sempre.

Como o MP pediu a absolvição no caso, o juiz acatou o pedido ministerial, e, de forma fundamentada, o acusado foi absolvido com base no inciso VII do Código de Processo Penal, que diz que o juiz absolverá o réu quando não existir prova suficiente para a condenação. 

Não cabe a mim, como advogada criminalista, concordar ou não com a existência de provas neste caso concreto. A minha opinião jurídica, neste momento, não importa. Já quem esteja habilitado na ação penal e discorde do feito, possui todo o direito de recorrer da sentença. Reafirmo mais uma vez que não há nenhuma aberração jurídica na absolvição proferida na sentença. É uma premissa essencial de um Estado Democrático de Direito condenar alguém com base em provas concretas. Na dúvida, somos todos inocentes, e caso acusados da prática de um crime e não existam provas suficientes, devemos ser absolvidos. A gente concordando ou não com isso, a lei é a mesma para todos. 

Opinião pessoal

Por mais que eu já tenha escrito muita coisa, me sinto no dever de continuar sendo transparente com vocês. Sou e sempre serei uma ferrenha defensora dos direitos das mulheres. 

Sou advogada criminalista e também sou mulher. Uma coisa não me impede de ser a outra. E ambas são condições bastante marginalizadas na sociedade. Eu, Luísa, enquanto advogada criminalista, por exemplo, não vejo problema nenhum em defender uma pessoa acusada de estupro, desde que eu me sinta confortável com as teses defensivas a serem suscitadas. Minha atuação profissional é sempre pautada no respeito perante qualquer pessoa, inclusive a mim mesma. E é sempre bom lembrar que todos possuem direito de defesa.

Tenho a minha opinião pessoal, enquanto mulher, sobre esse caso? Sim. Ela importa? Não. E nem a sua. E nem a de ninguém além das pessoas envolvidas no julgamento deste processo. Só quem já foi vítima ou acusado de um crime sabe o quão dilacerante é quando o seu caso é exposto na mídia e você enfrenta o julgamento das redes sociais, além do judicial. O que está documentado no processo muitas vezes não chega nem perto do que aconteceu de verdade. E nós espectadores não sabemos nem o que aconteceu na vida real e nem o que está processo.

Portanto, seguindo a linha do que eu disse na coluna passada, recomendo muito cuidado e muito filtro com o que pensamos, lemos e dizemos sobre a vida alheia.  

Geralmente a gente coloca a lente das nossas experiências de vida naquilo que os outros relatam. Eu, Luísa, já vivi experiências muito maravilhosas no “nem tão maravilhoso mundo” dos beach clubs em Florianópolis. Já vivi experiências horrendas também. Eu, Luísa, já fui assediada sexualmente, presencialmente ou pelas redes sociais. Eu, Luísa, sou constantemente julgada por ser mulher, na minha profissão e na minha vida pessoal. Eu, Luísa, já vi com os meus próprios olhos a dor de uma vítima de estupro. Eu, Luísa, também já vi com os meus próprios olhos a dor de alguém acusado injustamente por um crime que não cometeu. E eu, Luísa, já vi com os meus próprios olhos e já senti na pele a dor de ser julgada, questionada, e até xingada por exercer a minha profissão e defender pessoas acusadas pela prática de crimes. 

Esses são exemplos das minhas experiências pessoais. Mas não é porque eu já vivi essas situações que a minha verdade e a minha opinião valem mais do que a de qualquer outra pessoa. 

Meu intuito com este texto não foi polemizar ainda mais um caso tão delicado. Foi esclarecer a todos e todas que me leem conceitos jurídicos relacionados ao meu dia a dia profissional, mas sem me perder só no Direito. O mundo do processo não é, infelizmente, um retrato fiel do mundo da vida real. O mundo das redes sociais menos ainda. E tudo, tudo mesmo, possui seus pontos positivos e negativos. Cabe a nós encontrar um equilíbrio nesse emaranhado de incertezas. 

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