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Pente garfo: “quem que penteia o cabelo com um trem desse?”

Essa pergunta foi feita por uma participante branca de cabelos lisos do Big Brother Brasil 20, a respeito do pente garfo utilizado por outro participante, negro de cabelo afro, na semana passada. Gerou muita polêmica na internet, e assim que eu assisti o vídeo do momento, uma sensação de dor muito familiar ecoou dentro de mim.

Eu tenho cabelo crespo/cacheado. Com vários tipos de cachos – na parte de baixo da nuca eu tenho cachos bem miudinhos, ao longo do cabeça eles vão ficando maiores e na parte da frente o meu cabelo é ondulado. Eu não consigo me recordar exatamente quantos anos eu tinha quando comecei a alisar o cabelo, mas era muito nova, criança mesmo.

Eu lembro de detalhes do cheiro insuportável de produto químico que fazia meus olhos lacrimejarem e da dor de passar a chapinha que queimava o meu couro cabeludo. Mesmo assim, eu repeti esse processo durante anos, várias vezes ao ano, porque meu cabelo cresce muito rápido, então a raiz crespa sempre aparecia. Meus pais não eram muito fãs do alisamento… meu pai mesmo, era super contra. Mas eu também me recordo de insistir em alisar porque eu não tinha nenhuma amiga com o cabelo igual ao meu, todas eram “lindas de cabelo liso”. Por que só eu tinha cabelo “ruim”?

Se já era difícil quando criança, imaginem na adolescência. Todas as minhas amigas tinham cabelos lisos ou alisados quimicamente. Eu não conhecia uma mulher sequer com o cabelo remotamente parecido com o meu, não me sentia representada em lugar algum, e tinha um sério problema de autoestima com isso, porque meu cabelo nunca estava bom o suficiente.

Aos 17/18 anos passei a morar sozinha em outra cidade, e aí não tinha mais tempo nem dinheiro para alisar o cabelo com tanta frequência. Foi aí que passei a me questionar se realmente gostava do meu cabelo “liso”, se me achava bonita ou se só queria me sentir inserida na sociedade. Eu nunca estava satisfeita com o meu cabelo e sequer me lembrava como ele era ao natural. Na época não havia muita informação sobre “transição capilar”. A única coisa que eu sabia é que não aguentava mais usar coque ou rabo de cavalo, porque meu cabelo estava metade natural crespo e metade liso (ele realmente cresce muito rápido).

Decidi então cortar e ver no que que dava. Foi assim que abandonei o alisamento e assumi os cachos. Não sabia nem como cuidar ou o que fazer. Do nada eu tinha um cabelo curto, acima do ombro, e cachos. Foi uma loucura. Lembro até hoje da sensação incrível de ser mais leve e eu mesma. Eu me olhava por horas no espelho. Meus pais amaram a transformação, minhas amigas também, as pessoas diziam que eu tinha sido muito corajosa na “transformação radical”.

Mas teve muita gente (mulheres, principalmente) que disseram que eu tinha ficado doida, que era “muito mais bonita” com o cabelo liso. Também já ouvi de muitos homens “você sempre usa seu cabelo assim (natural)? Você nunca alisa? Ficaria bonito”. Quando corto meus cabelos em salão de beleza, muitos profissionais se assustam quando eu me recuso a escovar o cabelo depois de cortar. “Ué, mas você não quer ver como vai ficar o corte? Você não quer sair daqui linda?” Até hoje ouvir essas coisas dói.

Por que ser “linda” implica em ter cabelo liso? Por que as pessoas se acham no direito em opinar sobre como eu devo usar o MEU cabelo? Por que as pessoas ficaram tão impressionadas quando eu decidi usar meu cabelo natural na minha formatura? Por que temos sempre que estar dentro dos padrões de beleza da sociedade? E ainda, como uma sociedade tão multicultural e miscigenada como a brasileira, que teve a escravidão da população negra como regra durante absurdos e lamentáveis anos, ainda é capaz de reproduzir discursos de racismo velado, como o da participante do BBB, travestidas de brincadeira? Isso é inaceitável.

Se uma mulher com cabelo crespo/cacheado/afro decidir alisar o seu cabelo porque esse é o SEU desejo, a SUA vontade, tudo bem, a escolha é dela. Ela não pode é ser obrigada a mudar quem ela é para se adequar ao padrão de beleza imposto pela sociedade. Não é aceitável dizer que cabelo crespo é cabelo ruim. Não é aceitável sair tocando o cabelo das pessoas sem autorização.

Você não precisa estar com o cabelo liso, escovado para ser considerada “bonita”, “arrumada”, “asseada”, “elegante”, “profissional”. O seu cabelo é lindo do jeito que VOCÊ decidir usá-lo. Eu sei que é bem difícil ser forte o suficiente para não se importar com a opinião e os olhares das pessoas. Mas é possível. Eu consegui!

E se você quiser trocar uma ideia comigo sobre essa trajetória, sobre transição capilar e sobre como cuidar de cabelo crespo, é só me chamar 🙂 E por último, aqui em casa eu não tenho escova de cabelo. Eu não uso pente garfo, mas uso um pente de madeira com dentes bem espaçados, e só penteio meu cabelo quando lavo. Informação é sempre útil, né? Na dúvida, pergunte, mas com educação e muito, muito respeito. Pensar antes de falar é sempre bom, também.

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